O aborto é a interrupção deliberada da gravidez, resultando na morte pretendida do feto. Drogas abortivas que induzem o aborto eram conhecidas por muitas culturas antigas, mas, devido ao perigo de aborto para a mulher, antes dos tempos modernos, os métodos mecânicos de interromper intencionalmente uma gravidez eram relativamente incomuns.
Somente no final da
República Romana e no início do Império Romano o aborto generalizou-se. A
maioria das outras culturas era governada por códigos legais que indicavam uma
retribuição severa por matar um feto enquanto ele ainda estava no útero.
1. O ANTIGO TESTAMENTO
A Bíblia não aborda diretamente a questão
do aborto, mas passagens como Jó 10.8-12; Salmos 51.5,6; 139.13-16; Jeremias
1.5 e Lucas 1.39-44 são citadas para apoiar a crença de que o feto é um ser
humano portador da imagem de Deus.
Êxodo 21.22,23 fala de dois casos
envolvendo uma briga que machuca uma mãe grávida. O texto hebraico é difícil de
interpretar. Uma interpretação (e.g., RSV e NRSV) sustenta que, no primeiro
caso, se um aborto espontâneo ocorrer sem ferimentos à mãe, então se faz
necessária compensação monetária. No segundo caso, se a mulher for machucada, a
regra da lex talionis (“a lei da retaliação”, e.g., “olho por olho”) é
invocada. Alguns argumentam que essa frase estereotipada não deve ser tomada
literalmente, mas que quem machucou a mulher tinha de compensar o marido pela
morte de sua esposa ou de seu bebê. O texto hebraico também pode ser
interpretado como na NIV para significar que, no primeiro caso, um nascimento
prematuro de uma criança saudável ocorre sem ferimentos à mãe ou à criança, e,
no segundo caso, uma delas é ferida.
A tradução grega (a Septuaginta) de Êxodo
21.22,23 é bem diferente do hebraico: “Agora, se dois homens lutam e atacam uma
mulher grávida e seu filho sai não completamente formado, ele será punido com
uma multa. Segundo o marido da mulher impor, ele deve pagar com avaliação
judicial. Mas se for totalmente formado, ele pagará vida por vida, olho por
olho, dente por dente”. A distinção entre uma criança “não formada” e uma
criança “formada” pode ter sido influenciada pela opinião de Aristóteles.
2. O NOVO TESTAMENTO
A palavra grega usual para o aborto, amblosis, nunca é usada no Novo Testamento. Paulo, em sua humildade (1 Co 15.8), refere-se a si mesmo como extroma, que pode significar aborto, mas que nesse contexto significa um aborto espontâneo como expressão da miséria humana ou um embrião ainda em desenvolvimento.
É possível que a condenação daqueles que
usavam “drogas” pharmakeia para fins nefastos (G1 5.20; Ap 9.21; 18.23)
incluísse aqueles que usavam drogas abortivas.
3. O MUNDO DO ORIENTE PRÓXIMO
Há paralelos com Êxodo 21.22,23 no Código
da Lei de Hamurábi (s. XVII a.C.). A Lei 209 diz: “Se um cidadão bateu na filha
de outro cidadão e lhe causou um aborto espontâneo, ele deve pagar dez siclos
de prata pelo feto”. A Lei 210 estipula: “Se aquela mulher morreu, eles
causarão a morte de sua filha” (ANET, 175).
Na posterior Lei da Assíria Média n° 21
(ca. 1600-1500 a.C.), alguém que, ao atacar uma mulher causou um aborto, tinha
de pagar dois talentos e 30 minas de chumbo, ser açoitado e trabalhar para o
rei por um mês. (ANET, 181).
A Lei n° 50, que é fragmentária, exige a “vida” pela morte do feto ou da mãe (ANET, 184). A Lei n° 53 condenava à empalação na estaca a mulher que teve um aborto deliberado, se ela estivesse viva ou morta após o aborto. O aborto é atestado no corpo médico da Babilônia em um único texto fragmentário: “fazer com que uma mulher grávida ‘deixe cair’ o feto”.
Entre os ingredientes, havia um lagarto,
cerveja e várias plantas para serem bebidas no vinho. Havia também várias
receitas médicas mesopotâmicas para induzir a expulsão do feto, que incluíam o
uso de substâncias vegetais como a assa-fétida.
O Código Hitita (ca. 1300 a.C.), nos 17,18
(ANET, 190) exigia compensação de qualquer um que fizesse com que uma mãe
abortasse. A penalidade variava de acordo com a idade do feto. A multa por um
aborto causado no décimo mês lunar era o dobro do causado no quinto mês.
Documentos jurídicos egípcios
fragmentários oferecem poucas evidências de aborto. O historiador Diodoro
Sículo observou: “Eles criam todos os seus descendentes”.
4. O MUNDO GREGO-ROMANO
Pseudo-Galeno alegava que Licurgo, o
grande legislador espartano (s. VIII a.C.), e Sólon, o grande reformador
ateniense (594 a.C.), proibiam o aborto. Enquanto os espartanos, que precisavam
de homens fortes para seus exércitos, proibiam o aborto, eles praticavam a
exposição de homens fracos e mulheres excessivas.
O famoso Juramento de Hipocrates fez com
que os médicos jurassem: “Eu não darei um remédio mortal (pharmakorì) a
ninguém, se for solicitado, nem farei uma sugestão nesse sentido. Da mesma
forma, não darei a uma mulher uma droga abortiva (pesson phthoriorif
(EDELSTEIN, p. 2,3). Estudiosos acreditam que o juramento reflete a crença
pitagórica de que a alma está presente na concepção.
Há evidências, no entanto, do chamado Corpus Hipocrático de que os abortos eram praticados. O tratado hipocrático Doenças das Mulheres lista vários supositórios vaginais que, acreditavam-se, eram abortivos.
Embora Platão sustentasse que o feto era
um ser vivo, para seu programa eugênico, ele prescreveu a procriação apenas
para homens entre 25 e 55 anos e mulheres entre 20 e 40 anos de idade. Para os
indivíduos fora dessas idades, “nós os exortamos a assegurar que nenhuma
criança, caso seja concebida, será trazida à luz” (Resp. 5.9.459).
Aristóteles sustentava que o feto recebia
uma “alma vegetativa ou nutritiva” no momento da concepção, uma “alma animal ou
sensível” em um estágio posterior e uma “alma racional” à medida que o momento
do nascimento aproximava-se.
Em História dos Animais 7.3, ele expressou
a crença de que o primeiro movimento ocorria no 40° dia para os homens e no 90°
dia para as mulheres. Para conter o excesso de população, ele sugeriu que o
tamanho das famílias fosse limitado, se necessário, por abortos (Pol. 7.15.25).
Os estoicos em geral sustentavam que o
feto era apenas parte do corpo da mãe e que sua vida começava com a primeira
respiração. Por outro lado, Musônio Rufo, importante moralista estoico romano,
opunha-se ao aborto. Ele sustentava que o único propósito do sexo é a
procriação, uma visão adotada mais tarde pelos cristãos. Como os estudiosos
destacam, a eventual oposição grega e romana ao aborto não se baseava em uma
preocupação com o feto individual, mas com o bem-estar do estado.
O aborto generalizou-se no último século
da República Romana e no início do Império Romano. Cícero (s. I a.C.) pediu a
pena capital em casos de aborto deliberado (Em Defesa de Cluêncio 32). Embora
Augusto tenha aprovado a legislação para promover o casamento e a procriação, a
lei romana adotou a visão estoica de que o feto ainda não era uma pessoa.
Ovídio, que desagradava a Augusto com seus
poemas eróticos, protestou veementemente contra o aborto de sua ama Corina e
escreveu: “Aquela mulher que foi a primeira a rasgar um feto frágil de seu
ventre merecia morrer de sua própria carnificina. [...] Se essa prática viciosa
tivesse encontrado favor entre as mães dos bons velhos tempos, a raça humana
teria se extinguido” (Am. 2.14.5-10). Sêneca elogiou sua mãe por nunca ter
destruído um filho em seu ventre. Nero exilou sua esposa Otávia por ter feito
um aborto. Domiciano foi culpado por ter tido um caso com sua sobrinha e depois
ordenado que ela fizesse um aborto, o que causou a morte dela.
Juvenal denunciava mulheres ricas que se recusaram
a ter filhos: “Tão poderosas são as habilidades e drogas da mulher que fabrica
esterilidade e aceita contratos para matar humanos dentro da barriga” (Sat.
6.594-597). Essas mulheres da classe alta valiam-se do aborto para esconder
suas atividades sexuais ilícitas ou para evitar serem desfiguradas pela
gravidez.
Sorano de Éfeso (98-137 d.C.), a
autoridade mais importante em ginecologia da antiguidade, afirmava que o aborto
só era permissível para salvar a vida de uma mulher. Ele opunha-se ao uso de
instrumentos cortantes, mas preferia remédios abortivos, como o phthorion,
que destruía o feto, ou o exbolon, que expelia o feto. Sorano mencionou
várias poções (Gyn. I 19.64-65), algumas das quais, como o lupino e o pepino
purgante, eram provavelmente eficazes.
Os imperadores Septímio Severo (193-211
d.C.) e Caracala (211-217 d.C.) prescreveram o banimento de uma mulher
divorciada que tivesse um aborto contrariando a vontade de seu ex-marido, e a
pena de morte para quem fornecesse um remédio abortivo que causasse a morte da
mulher.
5. O MUNDO JUDAICO
Fílon, comentando Êxodo 21.22,23, seguiu a
Septuaginta e escreveu: “Mas, se o rebento já está moldado e todos os membros
têm suas próprias qualidades e lugares no sistema, ele deve morrer, pois aquilo
que corresponde a essa descrição é um ser humano” (Spec. 3.108-109; cf. QG
1.25).
Josefo proclamou: “A Lei ordena que todos
os filhos sejam criados e proíbe as mulheres de causar aborto ou de eliminar o
feto; a mulher condenada por isso é considerada uma infanticida, porque ela
destrói uma alma e diminui a raça” (Ap. 2.202).
A Mishná permitia abortos terapêuticos
para salvar a vida da mãe sob certas restrições: “Se uma mulher estiver em
difícil trabalho de parto, a criança deve ser cortada enquanto estiver no útero
e trazida à luz membro por membro, uma vez que a vida da mãe tem prioridade
sobre a vida da criança; mas, se a maior parte já nasceu, não pode ser tocada,
já que a reivindicação de uma vida não pode anular a reivindicação de outra
vida” (m. ’Ohol. 7.6).
No Talmude, lemos: “Sobre a autoridade de
R. Ismael, foi dito: ‘(A pessoa é executada) até pelo assassinato de um
embrião’. Qual é o argumento de Ismael (para isso)? Porque está escrito: ‘Quem
derramar o sangue de um homem dentro de (outro) homem, terá seu sangue
derramado’. O que é um homem dentro de (outro) homem? — Um embrião no ventre de
sua mãe” (b. Sank. 57b). Os gentios que causassem a perda de um feto eram
culpados de crime capital.
6. O MUNDO CRISTÃO
O Didaquê condenou explicitamente o aborto
como assassinato: “Não abortarás uma criança (ouphoneuseis teknon en phthordf
(Did. 2.2; cf. Epístola de Barnabé 19.5, Holmes). Os apologistas posteriores,
como Tertuliano, defenderam os cristãos contra a acusação pagã de canibalismo,
declarando: “Para nós, o assassinato é proibido de uma vez por todas; pois,
mesmo a criança no útero não nos é lícito destruir”. Ele não fez distinção
entre aborto e infanticídio, dizendo: “Proibir o nascimento é apenas um
assassinato mais rápido” (Apol. 9.8).
Atenágoras perguntou: “E quando dizemos
que aquelas mulheres que usam remédios para provocar o aborto cometem
assassinatos e terão de prestar contas a Deus pelo aborto, em que princípio
deveríamos cometer assassinato?” (Leg. 35).
Basilio escreveu em uma carta a
Anfilóquio: “A mulher que propositalmente destrói seu feto é culpada de
assassinato. Conosco não há nenhuma boa indagação quanto à sua formação ou não
formação. Neste caso, não é apenas o ser que está prestes a nascer quem é
vindicado, mas a mulher em seu ataque a si mesma; porque, na maioria dos casos,
as mulheres que fazem tais tentativas morrem. A destruição do embrião é um
crime adicional, um segundo assassinato, em todos os casos, se considerarmos
que foi feito com intenção.
A punição, no entanto, dessas mulheres não
deve ser por toda a vida, mas pelo prazo de dez anos. E que o tratamento delas
não dependa do mero lapso de tempo, mas do caráter de seu arrependimento” (Ep.
188.2).
Em carta a Eustóquia, Jerônimo advertiu:
“Algumas, quando se veem com criança através de seus pecados, usam remédios
para obter aborto, e quando (como frequentemente acontece) morrem com seu
descendente, elas entram no mundo inferior carregadas de culpa, não só de
adultério contra Cristo, mas também do suicídio e assassinato da criança” (Ep.
22.13).
Agostinho, após a Septuaginta de Êxodo
21.22,23, sustentava que a destruição de um feto “não formado”, embora imoral,
não era assassinato. A codificação das leis sob o governo de Justiniano listava
o aborto como motivo para o divórcio.
Artigo: Edwin M. Yamauchi