1. Por que
Estudar Heresias?
Você deveria ler um livro sobre heresias? Alguns cristãos bem-intencionados, incluindo muitos pastores, diriam que não. “Deixe de lado; leia sobre a verdade, não sobre o erro.” Uma ilustração popular de sermão diz que, quando o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos (ou o Serviço Secreto) ensina os caixas bancários a identificar dinheiro falsificado, eles nunca mostram o dinheiro falso; apenas fazem que estudem o dinheiro verdadeiro para que reconheçam o dinheiro falso pelo contraste com o verdadeiro. O objetivo da ilustração do sermão é exortar os cristãos a estudar a verdade, e não a heresia.
Como
começou a ilustração do sermão e por que ela tornou-se tão popular? (Já vi essa
ilustração em introduções a livros sobre teologia cristã!)
Suspeito
que muitos pastores gostariam que seus congregantes interessassem-se mais no
estudo da Bíblia e da sã doutrina cristã do que em aprender sobre cultos. Entre
as décadas de 1960 e 1990, os Estados Unidos experimentaram uma onda de
interesse nos chamados “cultos e novas religiões” — movimentos espirituais
alternativos ao cristianismo tradicional. Muitos cristãos ficaram obcecados em
estudá-los. Os pastores e teólogos ficaram consternados com a paixão e fervor
das pessoas a favor e contra tais cultos e preocuparam-se com o fato de que,
por não estarem bem fundamentadas na fé cristã, poderiam ser influenciadas pela
retórica persuasiva para juntar-se a um movimento herético de culto não
cristão. (A palavra “culto” entre os americanos era então usada para referir-se
a ensinos religiosos heréticos e não ortodoxos. Mais tarde, passou a ser usada
para aludir a grupos religiosos violentos ou abusivos ganhando a conotação de
seita.)
Embora
eu entenda a preocupação, também me preocupo que muitos cristãos tenham pouco
ou nenhum entendimento de doutrinas ou crenças contrárias ao cristianismo
tradicional e histórico. As doutrinas alternativas inserem-se entre os
cristãos, às vezes, por mero mal-entendido da Bíblia ou da sã doutrina e outras
vezes por infiltração, quando mestres de falsas doutrinas tentam converter os
cristãos à maneira como esses mestres pensam e creem.
Muitos
cristãos são crédulos quando se trata de serem persuadidos por fornecedores de
falsas doutrinas que falam com muita lábia. Outros não sabem reconhecer as
falsas doutrinas quando as encontram. Às vezes, é difícil saber a diferença
entre a verdade e o erro, sobretudo para o estudioso não teólogo ou não
bíblico.
Este
livro é para as pessoas que querem saber o que significa “heresia”, por ser
ainda um conceito útil e até necessário, e que desejam discernir entre a
heresia e a verdade. Mas não espere uma prova incontestável! Se fosse assim tão
fácil, não haveria heresias vigentes. Muitos cristãos contemporâneos estão
preocupados com o fato de as suas igrejas terem se tornado doutrinariamente
pluralistas. Em outras palavras, elas adotaram a mentalidade do “vale tudo”
quanto a doutrinas ou abandonaram completamente a doutrina. Mas o que passa a
ocupar o lugar da sã doutrina não é um vácuo; é um caos.
Para
aqueles que estão ficando nervosos porque a conversa sobre “heresia” deixa as
pessoas nervosas em nossa sociedade orientada à tolerância, permitam-me
assegurá-los de que não sou “caçador de heresias”. Não acredito em inquisições
doutrinárias. O que acredito é no discernimento, algo que o apóstolo Paulo
exortou os leitores cristãos do século I a desenvolver e praticar. Inquisições
doutrinárias e provas de heresia não são necessárias; o discernimento cristão é
necessário. Caso contrário, nós, como cristãos, não temos uma mensagem comum
entre o nosso povo ou com o mundo ao redor. Não nos tornamos um coral, que
canta a mesma mensagem com vozes diferentes, mas uma cacofonia, uma confusão de
sons que afasta as pessoas com as mãos tapando os ouvidos.
A
heresia depende da ortodoxia. Ortodoxia é a correção teológica e doutrinária —
a crença correta. A heresia é o ensino (não apenas a crença equivocada) que
nega a ortodoxia. Em outras palavras, a heresia é um erro doutrinário sério, e
não pequeno. É, como será explicado ao longo deste livro, um erro que atinge o
cerne do Evangelho de Jesus Cristo. Toda denominação e igreja cristã têm algum
senso de ortodoxia, quer use, quer não, o termo. Todos têm uma crença comum e
seu fundamento, base e estrutura. É o que C.S. Lewis chamou de “cristianismo
puro e simples” em seu famoso livro com o mesmo título. Pense na ortodoxia
cristã comum como um “cristianismo puro e simples”. Recomendo fortemente a
leitura desse ou de qualquer outro livro semelhante para que o leitor tenha uma
ideia do que os cristãos tradicionalmente creem sobre Deus, Jesus Cristo, o
evangelho e a salvação.
Concordo
com os que argumentam que é mais importante que os cristãos saibam no que devem
crer, como seguidores de Jesus Cristo e membros de sua igreja, do que no que
não devem. Por outro lado, vivemos em um mundo cheio de cristianismos
falsificados — sistemas de crenças e doutrinas que afirmam ser cristãs e
conflitam muito seriamente com o Evangelho de Jesus Cristo. Ter a capacidade de
reconhecê-las como falsificações do cristianismo verdadeiro é importante para o
discipulado cristão. Deus se importa com o que cremos acerca dEle. Algumas
crenças sobre Deus desonram-no gravemente, pois distorcem sua natureza e o que
Ele fez por nós em Jesus Cristo. Ou inflam a natureza humana e a capacidade de
salvar a nós mesmos, que é outra maneira de desonrar a Deus.
Estudar
falsas doutrinas também é uma maneira de proteger a igreja. A igreja é a
comunidade do povo de Deus e a saúde, e o bem-estar dela depende, pelo menos em
parte, de crermos em Deus corretamente. Será que estamos verdadeiramente
adorando a Deus juntos, se muitos de nós têm ideias distorcidas sobre quem Deus
é e o que Ele fez por nós, e faz dentro de nós, e entre nós? O apóstolo Paulo
exortou os cristãos do século I a terem uma só mente, a saber, a mente de
Cristo. Ele não quis dizer que todos tinham de ter exatamente os mesmos
pensamentos; ele quis dizer que todos os cristãos deveriam concordar com as
verdades básicas sobre Deus, Jesus e a salvação. Sem a sã doutrina, as igrejas
tornam-se pouco mais do que clubes religiosos.
Por
fim, estudar heresias ajuda-nos a entender e apreciar a sã doutrina. Um dos
meus professores do seminário gostava de dizer aos que se opunham ao estudo das
heresias: “Se o estudo dos falsos ensinos leva você a apreciar sua fé
evangélica, que assim seja! Pode ficar irritado com o estudo!”. Posso
testemunhar que o estudo das heresias nunca me atraiu para elas; sempre me
levou de volta ao cristianismo puro e simples, ao cristianismo ortodoxo, à
doutrina cristã tradicional. Descobri que todas as verdadeiras heresias (nem
tudo o que alguém chama de heresia é heresia) são não bíblicas, ilógicas e
espiritualmente destrutivas.
2. Cristianismo
Falsificado?
Algumas
pessoas podem irritar-se com a ideia de cristianismo falsificado. Somos muito
sensíveis à intolerância, até para dizer “você está errado”. Não parece
educado. Somente os fundamentalistas, aqueles cristãos (e outros religiosos)
empedernidos, rígidos e de mente estreita que falam sobre cristianismo
falsificado, certo? Não concordo. Nunca conheci um cristão que, quando
confrontado com alguma versão do cristianismo, alguma suposta crença cristã,
não ficou horrorizado e pensou, se é que não disse: “Isso não é Cristianismo!”.
Durante a década de 1930, um grupo que se autodenominou “cristãos alemães”
surgiu nas igrejas cristãs alemãs. Eles dedicaram-se ao partido e ideologia
nazista e a Hitler como um novo messias. Isso levou a uma “luta de igrejas” na
qual outro grupo, a Igreja Confessante, separou-se das igrejas sustentadas pelo
Estado tomadas pelos nazistas. Dietrich Bonhoeffer era um líder do último
grupo. Até hoje, alguns cristãos nos Estados Unidos aderem à ideologia da
supremacia branca que promove o ódio contra os afro-americanos e os judeus.
A
maioria dos cristãos confrontados com esses fenômenos dirá rapidamente: “Mas
eles não são cristãos verdadeiros”. Portanto, nem tudo que afirma ser cristão
realmente é. Há cristãos, porém, que evitam tratar qualquer crença como
prejudicial em si mesma, desde que não resulte em violência ou opressão. Mas,
como disse certo teólogo, toda heresia é cruel, no sentido de que afasta as
pessoas da verdade, direciona-as à ilusão e distorce nosso relacionamento com
Deus.
Por
quase dois milênios, os cristãos concordaram que a crença correta é parte
importante do Cristianismo. Deram-lhe diferentes graus de importância e
infelizmente exageraram quando perseguiram as pessoas que eles consideravam
erradas. Essa é grande parte do motivo pelo qual muitos cristãos modernos (sem
mencionar os não cristãos!) tremem diante das palavras heresia e herege, por
causa da lembrança de pessoas sendo afogadas, queimadas na fogueira e
torturadas por defensores da ortodoxia. Todavia, nem todos os defensores da
ortodoxia cristã fazem caçadas à heresia ou inquisições. Muitos são amáveis e
gentis com os que eles consideram errados em suas crenças, mesmo quando tiveram
de corrigi-los.
Existem
graus de heresia. O racismo em nome de Cristo é pior do que, digamos, a crença
na reencarnação. (Essa crença é tradicionalmente considerada heresia pela
maioria das igrejas cristãs, embora muitos cristãos acreditem nela.) Existem
muitos métodos para lidar com a heresia. É raro alguém ser fisicamente
prejudicado por ensinar heresia, pelo menos no mundo ocidental moderno. No
entanto, a correção pastoral, gentil e amorosa também é uma maneira de lidar
com as heresias ensinadas pelos cristãos. Essa é quase sempre a única maneira
de lidar com a heresia hoje, se é que é feita.
A
questão é que existe um cristianismo falsificado, e quase todo mundo que pensa
sobre o assunto sabe disso. Nem tudo o que vem sob o rótulo de cristão é
compatível com o Evangelho de Jesus Cristo. Os “cristãos alemães” não eram
cristãos de verdade e precisavam de forte correção de pastores-teólogos como
Bonhoeffer. Quando não se permitiram ser corrigidos e persistiram em proclamar
a Hitler como o novo messias e o nazismo como o novo evangelho ao lado, senão
acima, de Jesus Cristo e da Bíblia, os verdadeiros cristãos tiveram de
separar-se deles e fundar a Igreja Confessante. Em qualquer lugar, o mesmo
poderia acontecer hoje, embora, na maioria das vezes o cristianismo falsificado
seja um pouco mais difícil de identificar e a transigência americana
contemporânea juntamente com a tolerância milita contra qualquer forte correção
dele.
Um
pressuposto básico deste livro é que existe o cristianismo falsificado e que
quase todas as formas dele existem há muito tempo. As heresias que os cristãos
primitivos enfrentaram e lidaram ainda estão desafiando o evangelho e às
comunidades cristãs de dentro e de fora. As heresias vivas são as antigas que
continuam a assumir novas formas.
O
objetivo deste livro é informar aos cristãos preocupados sobre essas heresias
perenes, os cristianismos falsificados, para que possam praticar o
discernimento e a correção em espírito de amor. Meu objetivo não é iniciar
caçadas por heresia ou fazer inquisições. É ajudar os cristãos a saber quais
são as principais heresias, no que elas creem e por que são falsificações da
verdade.
Se
existe um pressuposto importante neste livro é que, se o cristianismo é
compatível com tudo e qualquer coisa, então ele não é nada. Em outras palavras,
se o cristianismo é compatível com toda e qualquer crença, então é sem sentido.
Há um conteúdo cognitivo no cristianismo, que tem um certo sistema de crenças,
uma visão de mundo e uma perspectiva que inclui doutrinas. O afastamento disso
mina a integridade do cristianismo e abre as portas e as janelas das igrejas
para todo tipo de confusão e declínio do discipulado.
3. Significados
Válidos e Inválidos da Heresia
Agora
é a hora de esclarecer algumas confusões comuns sobre esses termos. Se você
entrevistasse uma centena de pessoas de dez igrejas diferentes (para não falar
de um shopping ou outro local público secular) e perguntasse o que significa
heresia, obteria 50 respostas diferentes. É tentador dizer que a heresia é um
conceito essencialmente contestado. Isso ocorre porque, pelo menos em um
contexto social pluralista sem igreja estatal ou dentro de uma igreja ou
denominação sem uma ortodoxia doutrinária imposta, não há padrão ou critério
para determinar a heresia. A heresia depende da ortodoxia. Onde não há
ortodoxia, um conjunto de crenças teologicamente correto, a heresia dificilmente
pode existir. Pelo menos não a heresia formal. Ainda pode haver e sempre haverá
crenças às quais a maioria das pessoas opõe-se. Tente promover o socialismo em
uma comunidade do extremo sul dos Estados Unidos!
Mesmo
entre as pessoas que não têm ortodoxia religiosa, você pode ouvir acusações de
“heresia!”. Essa é a heresia informal, que é a crença que a maioria das pessoas
considera seriamente errada.
Este
livro é sobre a heresia formal, que é a crença que está errada por algum padrão
acordado. Mas, em uma sociedade pluralista como os Estados Unidos, não existe
um padrão religioso acordado. O que é heresia em uma comunidade religiosa não é
em outra. Mesmo assim, penso que podemos falar sobre heresia formal em termos
de cristianismo puro e simples. Seria a crença que vai contra, nega ou
contradiz o que os cristãos em todos os lugares sempre têm crido. É o ensino
doutrinário que contradiz categoricamente a Grande Tradição da interpretação
bíblica entre os cristãos de todas as variedades — cristãos ortodoxos
orientais, católicos romanos, protestantes. Até a maioria das denominações e
igrejas protestantes tem algum padrão de crença que começa com os grandes
ensinos do cristianismo antigo e da Reforma — a divindade e a humanidade de
Jesus Cristo (a encarnação), a Trindade, o pecado original (que todos os seres
humanos, por alguma razão, necessitam de salvação), a salvação somente pela
graça de Deus, a morte e ressurreição de Jesus Cristo como coisas necessárias
para a salvação, a inspiração da Bíblia e assim por diante. Esses ensinos, sem
muita elaboração e acréscimo, constituem a crença cristã ecumênica, ou seja, o
“cristianismo puro e simples”.
Se
você reunisse pastores e líderes leigos das igrejas ortodoxas orientais, das
igrejas católicas romanas e de vários grupos protestantes e pedisse que
fizessem uma lista de suas crenças cristãs essenciais, as crenças supracitadas
estão entre as que apareceriam no topo da maioria das listas. Algumas listas
seriam mais longas do que outras. Tipicamente, os fundamentalistas são os
cristãos de várias denominações que tendem a considerar que todas as crenças de
suas igrejas são essenciais. Alguns até incluem a vinda pré-milenar de Jesus
Cristo como crença cristã essencial. Algumas listas seriam muito mais curtas do
que outras. Algumas igrejas, especialmente as que se consideram moderadas ou
mesmo liberais, teriam listas muito curtas de crenças cristãs essenciais.
Algumas igrejas poderiam dizer que não consideram nenhuma crença essencial, até
que você perguntasse a elas sobre o racismo, por exemplo. Mas muitas fariam uma
lista das doutrinas mencionadas no parágrafo anterior como crenças cristãs
essenciais e comuns (universais) e pelo menos diriam que esperam que o clero as
acate e as ensine.
As
doutrinas que negam descaradamente as crenças cristãs comuns e essenciais que
remontam ao cristianismo antigo, que estão enraizadas no Novo Testamento e que
foram expressas nos primeiros credos cristãos, são as que mais nos preocupam
aqui. Ou, para ser mais preciso, estamos mais preocupados com as negações delas
— as heresias que as rejeitam e, mesmo assim, são ensinadas, às vezes, entre os
cristãos.
Mas
há outra forma ou grau de heresia além dessa. Vou chamar as que acabei de
descrever acima de “heresias ecumênicas”, porque praticamente todas as igrejas
com raízes no cristianismo antigo ou na Reforma reconhecem-nas como tais. A
segunda forma é a que chamarei de “heresias denominacionais”. São as crenças
que contradizem as doutrinas distintivas de certas denominações de cristãos (ou
tradições; grupos de denominações que creem da mesma forma).
Por
exemplo, para um católico crer e ensinar que Jesus Cristo não era Deus
encarnado, verdadeiramente humano e verdadeiramente divino, é uma heresia
ecumênica, porque praticamente todos os cristãos sempre creram nisso, apesar de
haver (como veremos) vozes minoritárias que falem contra isso de vez em quando.
Mas, para o católico crer que Maria nasceu com pecado original ou morreu, em
vez de ser levada ao céu em uma espécie de “transladação”, também é uma
heresia. As ideias sobre Maria são distintivas para os católicos, mas não para
os protestantes; são, portanto, heresias apenas entre os católicos. Esses são
exemplos do que chamo de “heresias denominacionais” em oposição a “heresias
ecumênicas”. As heresias denominacionais não são as principais preocupações
deste livro. Só para começar a discutir todas as heresias denominacionais
consumiria numerosos livros!
Outro
exemplo de heresia denominacional pode ajudar a definir precisamente a
diferença em relação à heresia ecumênica. Os batistas ensinam que somente as
pessoas com idade suficiente para confessar a fé cristã devem ser batizadas nas
águas. Chama-se “batismo de crentes”. Por não crerem que o batismo infantil
seja “batismo de verdade” (eles consideram que é dedicação infantil com água),
os batistas “rebatizam” (para usar um termo não batista) as pessoas que foram
batizadas quando eram bebês.
Para
os batistas, advogar e praticar o batismo infantil seria heresia. Para os
católicos ou os luteranos, advogar e praticar o “rebatismo” seria heresia. (Os
católicos e os luteranos concordam que os bebês devem ser batizados e que
“rebatizar” pessoas já batizadas está seriamente errado.)
Toda
denominação tem doutrinas distintivas escritas ou não escritas, e a negação
delas constitui o que estou chamando de “heresia denominacional”. Mas,
obviamente, o que é heresia em uma denominação não é em outra!
Se
fôssemos listar todas as heresias ecumênicas, o assunto deste livro, a lista
seria relativamente curta. Mas, se tentarmos listar todas as heresias
denominacionais, bem, seria difícil, senão impossível, incluí-las em algo que
não fosse uma biblioteca! Afinal, existem mais de trezentas grandes
denominações nos Estados Unidos e pelo menos mil e duzentas denominações
menores!
Até
agora, descrevi a heresia e duas versões dela — a “ecumênica” e a
“denominacional”. Agora é hora de examinar outra distinção importante: entre os
usos “descritivo” e “prescritivo” da palavra heresia.
Quando
uma pessoa rotula um ensino doutrinário de heresia, ela pode estar usando o
rótulo de modo descritivo ou prescritivo ou ambos. Descritivo significa o que
diz: descrever. Quando uma pessoa diz, por exemplo, que a negação da Trindade
(em geral, uma maneira particular de negá-la) é heresia, ela pode estar dizendo
que a maioria dos cristãos sempre a considerou seriamente errada, destrutiva
para o evangelho, contraditória para a ortodoxia cristã e assim por diante. Ela
pode não estar dizendo que a Trindade deve ser considerada heresia. A pessoa
que diz isso pode até não ser cristã; ela pode ser, por exemplo, uma ateia que
ensina religião em uma universidade secular (existem pessoas assim). Claro que
tal pessoa não está dizendo isso prescritivamente, ou seja, que a Trindade deve
ser uma heresia.
Prescritivo significa o que
diz: prescrever algo como “deve ser crido”. A pessoa que diz que a negação da
Trindade é heresia pode estar dizendo que os cristãos que negam a Trindade
estão errados e devem ser corrigidos.
Lógico
que a pessoa pode estar dizendo que a negação da Trindade é uma heresia em
ambos os sentidos — descritivo e prescritivo. É obviamente muito improvável que
ela esteja dizendo apenas no sentido prescritivo. Em geral, a pessoa que
declara que algo é herético pres-critivamente também está dizendo
descritivamente. A única exceção seria quando a pessoa está tentando convencer
outras pessoas que sua opinião doutrinária é mais do que mera opinião e deve
ser aceita, por assim dizer, como ortodoxia por todo um grupo de cristãos como
sua ortodoxia (quando ainda não o é).
Parecem
distinções sutis, mas não são. Apenas pense. Há crenças que são comumente
consideradas essenciais para todos os cristãos; são essenciais ao cristianismo
autêntico. Há crenças que são consideradas essenciais para a filiação
denominacional por algum grupo de cristãos, mas não tão essenciais para todos
os cristãos. Mas claro que, para complicar as coisas, há cristãos que tornam
todas as crenças, até suas peculiares crenças denominacionais, “essenciais ao
cristianismo autêntico”. Essas pessoas são consideradas sectárias, que é a
palavra que os estudiosos da religião usam para referir-se a grupos religiosos
que se consideram os únicos “verdadeiros cristãos”.
A
distinção prescritiva/descritiva é diferente, mas igualmente importante.
Não tem a ver com algo essencial versus algo denominacional, mas com a intenção
do falante ou escritor em rotular uma crença como heresia. A pessoa tem a
intenção de dizer que todos ou alguns cristãos consideram a crença heresia, quer
ela a considere ou não? Isso é descritivo. A pessoa tem a intenção de dizer que
considera a crença heresia? Isso é prescritivo.
A
distinção prescritiva é negligenciada ou desconhecida. Tive a experiência de
ser convidado para falar a um grupo cristão, porque sou teólogo histórico, ou
seja, alguém especializado em história e desenvolvimento de crenças e práticas
cristãs. Às vezes, quando digo que certa crença é heresia, estou dizendo apenas
descritivamente, mas sou entendido como se tivesse dito prescritivamente, o que
faz com que alguém se oponha com extrema força.
Ao
longo deste livro, tratarei principalmente de heresias ecumênicas — as crenças
contrárias ao cristianismo ortodoxo, comum, puro e simples, conforme foram
acordadas pelos líderes fiéis da igreja no início do cristianismo e também
pelos reformadores protestantes. E estarei falando de heresia tanto descritiva
como prescritivamente.
4. Significados
Válidos e Inválidos de Herege
Assim
como o termo heresia tem significados diferentes, o termo herege também. A
suposição comum é que toda pessoa que crê em uma heresia é automaticamente
herege. Errado. Claro que aqui estamos enfrentando o tão difundido uso de um
termo que é difícil corrigi-lo. As pessoas geralmente colocam o rótulo de
herege em alguém que elas acham que está seriamente errado sobre uma doutrina
ou que mantém uma opinião contrária à sua ortodoxia. É um uso extremamente
informal do termo herege que o torna inútil. Esse uso do termo simplesmente o
reduz a um insulto ou uma piada.
Na
verdade, em termos histórico-teológicos, pelo menos para a maioria das
denominações cristãs, ninguém pode ser um “herege acidental” ou mesmo um herege
involuntário e inconsciente. Estar errada teologicamente não faz da pessoa uma
herege. Significa apenas que a pessoa está errada — talvez ela seja não
ortodoxa ou “heterodoxa”. Este último é um termo teológico técnico para
referir-se a uma crença ou pessoa em conflito com a ortodoxia. É muito menos
sério do que “herege” na lista de coisas ruins em que uma pessoa pode estar (em
termos de estar em apuros com sua comunidade de fé).
O
que torna a pessoa uma verdadeira herege? Em primeiro lugar, a pessoa tem de
estar ensinando heresia aos outros. A pessoa não pode ser herege apenas
mentalmente. Ela só se torna herege quando ensina sua heresia para outras
pessoas. Em segundo lugar, a pessoa tem de saber que o que ela está ensinando é
heresia para sua comunidade de fé. Em outras palavras, a pessoa não pode ser
herege totalmente fora de sua comunidade de fé.
Tecnicamente falando, ninguém
nunca deve ser chamado de herege a menos que se encaixe no seguinte:
(1)
é membro de uma comunidade de fé e ensina contra a ortodoxia ali exposta e (2)
sabe que a doutrina que está ensinando conflita com a ortodoxia da comunidade
de fé.
Isso
deve ter surpreendido muitos leitores que estão acostumados a pensar que muito
mais pessoas são hereges do que realmente são! Não é tão fácil ser herege.
Eu,
por exemplo (e é prática comum entre os cristãos formados em teologia), não
rotulo as pessoas de hereges, a menos que saibam que o que ensinam é contra o
cristianismo ecumênico ou contra a ortodoxia de sua denominação.
Agora,
uma qualificação faz-se necessária. Os leitores perspicazes podem estar
pensando: “E quanto à pessoa que não pertence à sua comunidade de fé, mas nega
a ortodoxia cristã básica, ecumênica e comum?”. Sim, é adequado chamá-la de
herege se ela souber que o que ensina é contrário à ortodoxia cristã básica,
ecumênica e comum, mesmo que a denominação a que pertença tolere-a.
Nesse
caso, a “comunidade de fé” à qual a pessoa pertence e contra cuja ortodoxia ela
ensina é o cristianismo ecumênico, ou seja, o corpo universal e invisível de
Cristo, a igreja do povo de Deus através dos tempos. Obviamente, como não
existe um magistério universal ou autoridade eclesiástica para governar isso,
tal pessoa pode muito bem ser imune à correção. Chamá-la de herege é apenas
questão de opinião, mesmo que seja opinião qualificada.
No
entanto, se a pessoa pertence a uma denominação ou congregação que possui
crenças específicas, seja ecumênica, seja denominacio-nalmente específica ou
ambas, ela pode estar sujeita à correção e até disciplina, possivelmente
excomunhão. Mas, em geral, somente se ela estiver ensinando contra a ortodoxia
reconhecida pela denominação. Há denominações que desistiram dessa correção ou
disciplina eclesiástica e permitem que qualquer coisa seja ensinada. Pelo menos
é o que dizem. A alegação de serem “livres”, “pluralistas” e “inclusivas” é
colocada à prova quando alguém se pronuncia a favor do racismo, do sexismo, da
violência ou do ódio. A maioria das denominações e congregações que afirmam
permitir qualquer crença impõe um limite em algum lugar.
Tudo
isso quer dizer que, necessariamente, o rótulo de herege não está
inseparavelmente ligado à heresia. A pessoa pode muito bem crer ou até ensinar
heresia por ignorância. Logo que é informada de que o que está ensinando é
heresia e continua a crer ou ensinar dentro da comunidade de fé, então ela é
herege. Em outras palavras, ser herege é sempre pretencioso e nunca acidental
ou inconsciente.
5. Exemplos de
Heresias Ecumênicas
Um
dos primeiros líderes cristãos a usar o termo heresia foi Irineu, bispo de
Lugduno, que hoje é a cidade de Lyon na França (então chamada Gália). Ele
nasceu na Ásia Menor (atual Turquia), que era, então, no século II, um viveiro
do cristianismo no Império Romano. Seu mentor espiritual na fé cristã quando
adolescente era Policarpo, o bispo de Esmirna, cujo mentor havia sido João, o
discípulo mais jovem de Jesus e o renomado autor do Evangelho de João e do
livro de Apocalipse. Em outras palavras, Irineu, que morreu durante uma
horrível perseguição levantada pelos romanos contra os cristãos no início do
século III, foi um importante elo do século II com os discípulos de Jesus.
Irineu
era um emigrante de Esmirna para Lyon. Ele foi para lá com um grande grupo de
cristãos para ajudar a plantar igrejas na Gália. Mais tarde, tornou-se seu
bispo ou líder e viajava entre Lyon e Roma e outras cidades, dialogando com os
bispos sobre assuntos da igreja. Era conhecido por ser hábil em ajudar a
resolver controvérsias entre cristãos de opiniões diferentes, especialmente
sobre o governo e estrutura da igreja.
Por
volta de 177, Irineu comprometeu-se a escrever um livro contra os falsos
ensinos entre os cristãos, sobretudo em Roma. “Todos os caminhos levam a Roma”,
e os cristãos de todo o império viajavam a Roma para promover seus tipos
distintivos de cristianismo. Alguns deles, pensava Irineu, eram falsos, falsificados
e precisavam ser expostos como tais. Como ele sabia que eram falsos? O que lhe
deu autoridade para corrigi-los? Ah, sua ligação por meio de Policarpo (que foi
martirizado em Esmirna por volta de 155 em idade muito avançada) que voltava
até João.
Havia
autodesignados mestres “cristãos” em Roma e em outros lugares, que alegavam
ensinar uma forma de cristianismo mais verdadeiramente espiritual do que a
ensinada por Irineu e outros bispos. Eles passaram a ser chamados de gnósticos,
que vêm de uma palavra grega para referir-se a “conhecimento” ou “sabedoria”.
Afirmavam ter um conhecimento cristão mais alto e ser mais sábios em termos
espirituais do que os líderes cristãos nomeados pelos apóstolos e depois pelos
sucessores dos apóstolos.
As
doutrinas do gnosticismo serão descritas em um capítulo posterior, assim como
as do gnosticismo moderno. Como muitas das antigas heresias do cristianismo, o
gnosticismo está muito bem vivo no cristianismo contemporâneo. A principal
preocupação de Irineu sobre eles era que negavam a encarnação de Deus em Jesus;
negavam que o homem Jesus era divino e humano. Para eles, era impossível que
Deus se misturasse com carne e matéria, de modo que Jesus era mero repositório
humano para um ser espiritual enviado por Deus ou era esse ser espiritual que
aparentava ser humano (docetismo).
Para
corrigir os gnósticos e advertir os cristãos de suas influências, Irineu
escreveu Contra as Heresias (em latim Adversus Haereses) em cinco volumes.
Constitui a maior obra cristã do século II proveniente de um único autor e a
primeira teologia sistemática cristã (ainda que o principal objetivo fosse
refutar heresias). Irineu não inventou a palavra haereses para designar os
ensinamentos falsos ou o cristianismo falsificado. Ele pegou-a do latim comum. Significava
algo como “pensamento independente”. Mas, embora o pensamento independente seja
valorizado hoje no século XXI, era visto com suspeita no mundo antigo.
Significava ir contra a tradição, que era considerada a verdade. Para Irineu,
as “haereses” não eram meros exemplos de pensamento independente; eram
ensinamentos que contradiziam categoricamente os ensinos dos apóstolos sobre
Deus, Jesus e a salvação.
O
gnosticismo foi, ao longo do século II, a “sombra” do cristianismo apostólico.
Os vários autonomeados mestres gnósticos alegaram ser os fornecedores de um
evangelho secreto transmitido por Jesus a um círculo interno de discípulos, e
por esses poucos discípulos aos mestres dos gnósticos. Escreveram seus próprios
evangelhos, como o Evangelho de Tomé. Milhares de cristãos do século II em todo
o Império Romano foram seduzidos pelo gnosticismo. Irineu fez muito para
esclarecer as coisas e expor os gnósticos como promotores do cristianismo
falsificado. Depois dele, os gnósticos tenderam a desaparecer pouco a pouco
como uma grande influência entre os cristãos, mas alguns foram para “a
clandestinidade” e sempre existiram como a sombra contínua do cristianismo
ortodoxo sob outros nomes. Como veremos, o gnosticismo em formas permutadas
ainda existe no século XXI.
Há
anos, visitei a casa de um amigo. Seu avô havia escrito uma série de livretos
sobre a fé cristã e ele mostrou-os para mim e sugeriu que eu os lesse. Como
costumo levantar-me bem cedo, então, certa manhã, enquanto estava com meu amigo
e sua família, beberiquei um café e comecei a ler os livretos. O primeiro
falava que antes de Constantino, o primeiro imperador romano a afirmar ser
cristão (por volta de 311), os cristãos estavam todos unidos em mente e
espírito. Todas as divisões surgiram depois e em resultado da “conversão” de
Constantino ao cristianismo. Eu trabalhava no meu doutorado em teologia
histórica e sabia que isso era falso. Coloquei o livreto em silêncio na
prateleira e não disse nada ao meu amigo que reverenciava o avô. Todavia,
encontrei muitos cristãos que laboram sob a mesma falsa impressão.
O
fato é que os cristãos no Império Romano durante os séculos II e III (portanto,
antes de Constantino) estavam extremamente divididos em doutrinas e práticas da
fé. O gnosticismo foi uma das causas da divisão. Outra causa foi Montano e seus
seguidores. Ele alegou ser um profeta que falava diretamente de Deus e cujas
profecias eram igualmente autoritárias com os ensinos dos apóstolos (que, na
época, estavam todos mortos, mas haviam deixado homens, como Irineu,
encarregados de manter viva a verdade nas igrejas). Montano ensinou, por
exemplo, que o sexo é pecaminoso e que os verdadeiros cristãos devem ser
celibatários. Afastou seus seguidores das igrejas lideradas pelos bispos
levando-os para uma cidade na Ásia Menor a fim de aguardar a vinda de Jesus.
Outra
divisão entre os cristãos foi causada por um cristão romano chamado Marcião,
que, em meados do século II, ensinou que a Bíblia hebraica, o nosso Antigo
Testamento, não era escritura inspirada e rejeitou também muitos dos escritos
dos apóstolos por serem muito“judaicos”. Ensinou que o mundo não foi criado por
Deus, mas por um “demiurgo” (um ser divino) maligno ou demente e que o Senhor
da fé hebraica e do Antigo Testamento não era o Pai de Jesus Cristo. Propôs um
cânone (lista) de escritos cristãos inspirados que tinha apenas Lucas, Atos e
as Epístolas de Paulo, algumas das quais Marcião editou.
Também
em Roma, por volta do início do século III, havia um mestre cristão chamado
Práxeas que negou a Trindade. Ou, para ser mais exato, ele descreveu a Trindade
de uma maneira que a negou. Um mestre cristão do norte da África chamado
Tertuliano escreveu o livro Contra Práxeas (ele também escreveu contra Marcião)
para expor que os ensinos de Práxeas eram grave erro a ser evitado pelos
cristãos. A noção de Trindade apresentada por Práxeas foi captada e repetida
(ou independentemente alcançada) por outros cristãos em todo o Império Romano e
passou a ser chamada de “sabelianismo” (segundo o nome de outro herege chamado
Sabélio) e “modalismo”. A essência do erro comum foi e continua a ser (existe
hoje entre os cristãos) que Pai, Filho e Espírito Santo não são pessoas
distintas da divindade, a Trindade, mas apenas “modos” ou “manifestações” de
uma pessoa que é Javé, o Criador e salvador do mundo. Essa se tornou e continua
a ser uma das visões falsas mais comuns acerca de Deus entre os cristãos, mas
foi veementemente contraposta, por muitas boas razões, pelos bispos e Pais do
Cristianismo Primitivo, bem como pelos reformadores protestantes.
A
questão é que as heresias, as doutrinas falsas, sempre têm existido. O Novo
Testamento aborda-as e, conforme argumentam alguns estudiosos, foi escrito
principalmente para corrigi-las. O problema é que é difícil dizer quem eram os
promotores de heresias do século I ou exatamente o que estavam ensinando. Às
vezes, os autores parecem não saber exatamente, mas abordam a verdade em
oposição a erros emergentes e falsificações da verdade. Um exemplo é a
correspondência do apóstolo Paulo com os cristãos em Corinto. As duas epístolas
aos crentes coríntios lidam muito com erros doutrinários e práticas
prejudiciais naquela igreja. Há estudiosos que acreditam que o gnosticismo
estava começando a surgir naquele lugar; chamam esse gnosticismo inicial de
“proto-gnosticismo” (gnosticismo embrionário). Por exemplo, todos os gnósticos
do século II negavam a ressurreição corporal de Jesus e nossa futura
ressurreição corporal. Não porque não cressem em milagres (como muitas pessoas
hoje em dia), mas porque pensavam que o corpo é a sede do pecado e
intrinsecamente mau (como a própria matéria). Todo o capítulo 15 de 1 Coríntios
de Paulo é dedicado a argumentar em favor da ressurreição corporal. Em segundo
plano, pode ter havido um gnosticismo em desenvolvimento entre os cristãos.
Existem outras indicações sobre isso no próprio Novo Testamento.
6.
Problematizando o Conceito de Heresia
Muitos
autoidentificados cristãos modernos rejeitam todo o conceito de heresia. Para
dizer o mínimo, a modernidade, a cultura decorrente do Ilu-minismo,
problematizou a ideia de heresia. Este livro não abordará todas as objeções à
heresia; o objetivo do livro é informar as pessoas interessadas sobre as
heresias do passado e do presente. As pessoas que rejeitam o conceito de heresia,
ou não se interessarão, ou criticarão. No entanto, quero tratar brevemente a
questão para não deixar os leitores no escuro.
Há
duas razões principais pelas quais alguns cristãos modernos rejeitam a ideia de
heresia — pelo menos como estou usando a heresia aqui (a saber, cristianismo
falsificado).
Primeiramente,
como supramencionado, muitas pessoas de nossa época são sensíveis a qualquer
coisa que consideram intolerância; a tolerância, especialmente de ideias, é
quase um ídolo para os ocidentais modernos. Por tolerância, eles não querem
dizer que apenas permitem que as pessoas tenham ideias; querem dizer que
reconhecem todas as crenças como igualmente verdadeiras. É o que se chama de
“relativismo”, embora muitas pessoas que adotam e promovem a tolerância não
reconheçam que sua própria crença é o relativismo, porque então ele
tornar-se-ia autorrefutável. O relativismo absoluto não pode ser verdadeiro se
não houver a verdade absoluta. Portanto, as pessoas pensantes que afirmam a
tolerância como ideal geralmente querem dizer apenas que ninguém deve ser
punido, ou excluído, ou sancionado por causa de suas crenças.
Um
grande benefício do Iluminismo (embora se possa argumentar que ele tem raízes
mais antigas entre grupos religiosos minoritários como os anabatistas) é a
liberdade de religião do controle estatal. Os hereges não são mais torturados
ou queimados (graças a Deus).
No
entanto, muitas pessoas saltam de lá para fingir crer que todas as crenças,
especialmente as religiosas ou espirituais, devem ser aceitas como igualmente
verdadeiras por todos. Mas claro que isso significaria que nenhuma crença
religiosa ou espiritual é universalmente verdadeira; reduz as crenças à
subjetividade, à opinião pessoal e particular, sem reais afirmações referentes
à “verdade verdadeira”. O resultado de tal abordagem é que a religião torna-se,
na melhor das hipóteses, “religião popular”, não verdadeira, mas apenas questão
de preferência pessoal.
Historicamente,
o cristianismo faz afirmações referentes à verdade. Nem todas são verdadeiras,
é claro, mas esvaziar as afirmações do cristianismo referentes à verdade é,
inevitavelmente, destruí-lo. Sem afirmações referentes à verdade para todos, o
cristianismo não é mais o cristianismo, mas a “espiritualidade”. É assim que
algumas pessoas querem que o cristianismo seja; todavia, então, não é mais o
cristianismo de alguma forma reconhecível.
Tolerância
não necessariamente significa aceitar todas as afirmações referentes à verdade,
mesmo na religião, como igualmente verdadeiras. E dizer que algumas afirmações
referentes à verdade estão erradas, até seriamente erradas, não é ser
intolerante.
A
segunda razão pela qual o conceito de heresia foi problematizado na modernidade
é a proliferação de denominações e individualismo cristãos. O grande filósofo
do Iluminismo, Immanuel Kant, definiu o Iluminismo como: “Pense por si mesmo!”.
A maioria dos ocidentais modernos concorda que todas as pessoas devem ser
livres para pensar por si mesmas, e não receberem ordens sobre o que pensar ou
acreditar. Junto disso, surgiu a proliferação de seitas e grupos religiosos que
afirmavam ser cristãos, embora muitas vezes discordassem uns dos outros sobre
doutrinas muito básicas. Quem está certo? A tentação é dizer que tudo não passa
de opinião ou, na melhor das hipóteses, que é questão de julgamento particular.
Pouquíssimas sociedades possuem uma igreja estatal que tem o poder de impor a
crença nos cidadãos. Mesmo muitas denominações cristãs carecem de mecanismo
para decidir em que seus membros devem crer. Credos e confissões de fé são
esquecidos ou, mesmo que sejam recitados no culto e aprendidos no catecismo,
tratados como opcionais; as pessoas são encorajadas a escolher com que partes
concordam.
A
modernidade levou a uma situação em que muitas pessoas supõem que a religião é
particular, individual, principalmente sobre sentimentos ou comportamentos (não
doutrinas) e na qual as pessoas começam suas próprias igrejas ou denominações
independentes num piscar de olhos. Qual é o papel que a conversa sobre heresia
faz em uma ecologia religiosa? Muitas pessoas diriam que nada.
No
entanto, muitas pessoas estão cansadas de o cristianismo ser tratado dessa
maneira, como se estivesse desprovido de conteúdo objetivo e fosse uma espécie
de “competição livre”, em que vale tudo e sempre deve ser aceito como cristão,
só porque esse é o rótulo que está nele. Muitas pessoas descobriram que não é
incomum que certos cultos promovam-se como cristãos e ocultem o fato de que
suas crenças não têm nada a ver com o cristianismo histórico. Têm Jesus Cristo
entre seu panteão de deuses ou heróis, o que, dizem eles, os torna “cristãos”.
Mas muitos cristãos conscientizaram-se dessa tática e ficaram descon fortáveis com a
anarquia e o caos dos grupos “cristãos”. É para eles que este livro foi
escrito, para ajudá-los a reconhecer o falso do verdadeiro e obter uma visão do
cristianismo como possuidor de um conteúdo de crenças que exclui certas
crenças.
Sem
dúvida, a heresia é um conceito problemático no mundo ocidental moderno. Mas
acredito que é indispensável. Sem ele, o cristianismo é reduzido a uma religião
popular sem mensagem clara.
7. Identificando
e Lidando com Heresias
Muitos
livros foram escritos sobre como identificar heresias. O foco aqui será
descrevê-los mais do que os identificar. As principais, que a maioria dos
cristãos sempre chamou de heresias, serão descritas em suas formas antigas e
atuais. Mas é pertinente dizer algumas palavras sobre por que esses poucos
erros foram quase universalmente considerados perigosos à fé cristã. Depois,
falarei um pouco sobre como lidar com heresias entre os cristãos.
Cada
uma das heresias descritas neste livro surgiu entre os cristãos em algum
momento dos primeiros séculos da história cristã. Homens (e algumas mulheres)
sinceros e bem-intencionados, contudo mal orientados pensaram ter descoberto
uma verdade que faltava ao restante da Igreja. Entretanto, na maioria das
vezes, eles não eram herdeiros dos apóstolos em termos de liderança da igreja.
Eram empreendedores religiosos que surgiram entre os cristãos e passaram a
condenar o que os líderes das igrejas estavam ensinando em nome de um insight
especial, uma revelação nova ou uma sabedoria superior. Ocasionalmente, eram
líderes de igrejas, até bispos, mas estavam em desacordo com os demais e
persistiam em promover uma doutrina que a maioria dos bispos e presbíteros
(anciãos, pastores) considerava estranha e inconsistente com o evangelho
transmitido pelos apóstolos e por aqueles que eles nomearam.
Mas
a tradição não era o único critério para determinar o que era heresia e o que
era verdade. Embora o cânone (lista formal) dos livros do Novo Testamento só
tenha sido universalmente acordado em fins do século IV, já no final do século
II a maioria dos cristãos do Império Romano concordava que certos evangelhos,
epístolas e outros escritos eram verdadeiramente apostólicos e, portanto,
autorizados. E os Pais da Igreja do século II, como Irineu e Tertuliano (que
viveram e escreveram no século III) propuseram listas de doutrinas que, com certeza,
eram apostólicas. Os hereges foram os cristãos que desafiaram de maneira séria
e fundamental esse consenso sobre a crença cristã. Por fim, foram julgados como
promotores de um “evangelho diferente”.
Em
alguns setores, é comum argumentar que só houve um conjunto padrão de crenças
cristãs “ortodoxas” no tempo de Constantino, que tão-somente reforçou as
crenças dos bispos de que ele gostava. A in formação é falsa. Na verdade, Constantino
e seus sucessores tomaram o partido dos hereges em muitas ocasiões! O que
sempre foi crido e ensinado pelos apóstolos e seus herdeiros foi defendido
contra Constantino por líderes corajosos como Atanásio de Alexandria, a quem os
imperadores romanos exilaram cinco vezes por ele defender a ortodoxia e expor o
perigo das heresias.
Alguns
dos hereges eram, de resto, bons cristãos; nem todos eram ferrenhos oponentes
da verdade. De fato, cada um deles alegava amar a verdade. Viam-se como
reformadores das igrejas. Citavam as Escrituras para apoiar seus pontos de
vista. Mas, após muita deliberação, a maioria dos líderes da igreja decidiu (e
os posteriores reformadores protestantes concordaram) que suas versões da
verdade cristã eram, em última análise, destrutivas ao evangelho. Na maioria
dos casos, o raciocínio tinha a ver com Jesus Cristo e a salvação. As heresias
condenadas como tais pelos primeiros cristãos, antes e depois de Constantino,
foram na época julgadas e, desde então, têm sido julgadas pela maioria dos
cristãos por mudar a verdade sobre Jesus Cristo e/ou a salvação em outra coisa
— evangelhos diferentes.
Todas
as heresias cristãs primitivas continuaram a aparecer em formas diferentes sob
nomes diferentes ao longo da história cristã. Todas ainda estão por aí, entre
os cristãos, de alguma forma. Durante a era da “cristandade”, a unidade
orgânica da igreja e do império que durou do imperador Teodósio (379-395) até o
início do século XIX (o Sacro Império Romano formalmente terminou em 1806), os
governos perseguiam os que eram considerados hereges. Na maior parte do século
XIX e até o século XXI, a perseguição praticamente desapareceu. Um resultado
foi que antigas heresias ecumênicas reapareceram surgindo, por assim dizer, da
clandestinidade na qual estavam escondidas. As pessoas que secretamente
mantinham crenças heréticas viram-se livres para promovê-las abertamente e até
dentro de igrejas e seminários cristãos, ou fundaram organizações religiosas
alternativas (“seitas” e “cultos”) baseadas em uma ou mais heresias.
O
que deve ser feito a esse respeito? Claro que quase ninguém (inclusive eu!)
quer voltar às inquisições. Na maioria dos países ocidentais, especialmente nos
Estados Unidos, com a separação total entre igreja e Estado, as heresias são
livres para prosperar o quanto puderem. É assim que deve ser. Porém, permanece
a questão sobre o que os cristãos devem fazer quando descobrem que uma heresia
descrita neste livro está sendo ensinada ou pregada entre eles.
Algumas
denominações e igrejas têm procedimentos para contestar as heresias em seu
meio. Outras não têm e apenas “deixam rolar”, confiando no Espírito de Deus
para guiar e levar a comunidade à verdade, mesmo que seja por meio de
controvérsias turbulentas. Este livro não está comprometido com nenhum método
particular de tratar heresias, mas sugiro que o crente leigo que reconhece a
heresia sendo ensinada em sua igreja deve conversar com o pastor sobre o
assunto. Se isso não levar a lugar nenhum, fale com um líder ou alguém superior
a ele. Se a conversa fracassar, pode ser que o crente tenha de deixar a igreja e
encontrar outra em que o que ele ensina seja aceito e respeitado.
E
se você descobrir que há uma nova igreja na cidade que muitas pessoas não
reconhecem que está promovendo certa heresia, a qual você reconhece? É algo que
acontece com bastante frequência. Há anos, um grupo de “cristãos” coreanos
começou a estabelecer igrejas nas cidades americanas e a promover uma forma
falsificada de cristianismo, com base na ideia de que um profeta coreano era o
“Senhor do Segundo Advento”. Mas, pelo menos a princípio, foram muito discretos
e apresentaram-se como cristãos tradicionais com uma nova paixão pelo Reino de
Deus. Conheci vários líderes cristãos que se deixaram seduzir pelo estratagema
e aceitaram-nos, até que descobriram por cristãos mais discernentes que o grupo
mantinha crenças contrárias ao cristianismo ortodoxo.
Recomenda-se
cautela. O diálogo vem em primeiro lugar. Antes de dizer “discordo”, verifique
se você pode dizer “entendo”. Só então exponha a heresia inerente a uma nova
igreja ou grupo com amor para evitar que pessoas não discernentes, tanto
cristãs quanto não cristãs, caiam nela.
Autor:
ROGER E. OLSON